domingo, 19 de junho de 2016

Sonha Hito Steyerl com ovelhas eletrônicas? ou Isto não é um poema


PLANO SEQUÊNCIA:

a catadora de lixo
varre as ruas com o zoom dos olhos
o drama já se converte num clássico
do gênero marginal cinema-sarjeta
convocado espontaneamente
assim que soam os despertadores,
das bocas dos veículos
escoa o elenco de apoio 
pronto a produzir e despejar lixo em grandes quantidades

lixolixolixolixolixolixolixolixolixo
por onde o comboio passa
espalha-se o rastro de entulho
lixolixolixolixolixolixolixolixolixo

o roteiro original se confunde com documentário
Duas câmeras: olho esquerdo/olho direito de Sheila - mulher, negra, periférica, mãe do estudante Umberto Esperança - garoto precoce, engajado em lutas sociais na Escola Municipal Afogados


PLANO GERAL ABERTO:Sheila sai do bairro para a cidade com seu carrinho

morros, céu azul
(plongée) plano se fecha à medida que a personagem se aproxima do centro
pernas transitam calçadas
detritos se acumulam embaixo de mesas, rente às paredes
junto ao meio fio: detritos

(Som ambiente: grito, buzina, sirene
uns restos de conversa 
se não é voz suave de criança
Sheila ignora e segue)

câmera inquieta
flagra, cata e arruma no carrinho
toneladas a preço de nada
depois de reciclado, lucro sem fim aos magnatas do monturo

CORTE: em salas aclimatadas, acadêmicos discutem
a importância da reciclagem como alternativa para evitar o colapso ambiental


CORTE: os que enfeiam a cidade 
trazem a roupa e os dentes limpos
desviam seus corpos do corpo de Sheila 
evitam o choque com o que consideram espécie de lixo que respira

Sheila para isso pouco se lixa
divisa à frente um par de coturnos
o tecido da farda provoca-lhe náuseas
mudança de  itinerário
dois minutos pro suco que o seu garoto garante

lanchonete da esquina:
Umberto no trampo onde bate o ponto
momento alto do dia
Sheila ergue os olhos 
close no filho que o lixo manteve vivo

agito do outro lado da rua
perseguição 
corre doido de polícia
o crack e o traque
coturno saca da arma
coturno puxa o gatilho

pipoco seco
cadê a bala?
mãos aos ouvidos
Sheila vasculha o chão
cadê a bala?

plásticos, papeis, metais 
nada da bala
olho comovido viu
o tiro atingiu a frio
A cabeça do menino

corpo estendido, sangue escorrendo
que foi que houve?
quem viu? 
isso é filme?
pegadinha do apresentador?
levanta daí, menino!

olhos enquadram o monstro fardado
nenhuma resposta devolve a vida
ao corpo quente estirado no chão
carne negra só se compra viva 
e em condições para o desempenho bruto da lida
CLOSE: as mãos se banham do sangue do seu sangue
atônita, a mãe mascara de vermelho a cara
o urro na rua no meio do redemoinho

logo ali, o repórter, também armado, dispara o flash
confere o furo e encaminha à redação a imagem digital
Sheila cinco mil vezes impressa nas Notícias Populares
Sheila lançada no quintal do assinante
Sheila no balcão da padaria
Sheila nas banquinhas de revista
Sheila varre as ruas com o zoom dos olhos
sua imagem e semelhança amassada, largada a um canto da calçada
Sheila flagra/cata/arrumanocarrinho 


FADE IN: homem gordo em sala de apartamento

revira os posts em sua rede social
entre fotos fofas de felinos
reproduções de Sheila 
sua cara fotoshopada, lavada de sangue 
legenda: "Filho de catadora é morto com bala perdida"

(perdida não, se estivesse perdida, a catadora achava e reciclava!
(polícia fazendo o seu trabalho com afinco
(bandido tem que matar mesmo, antes de fazer uma vítima fatal
(esse país vai de mal a pior #maisamorporfavor
(se estivesse em casa, isso não teria acontecido
... Hamlet e outras 792 pessoas curtiram

obra em pleno movimento de reprodutibilidade técnica
música instrumental, sobem os letreiros
o filme entra em cartaz
o filme sai de cartaz
baixam a cópia, repassam o link
um poema é escrito
o fato é esquecido
Sheila na rua camuflada
Sheila imagem no cyberspaço viajando à deriva 

NINGUÉM: O que você está vendo aí, Hamlet?
HAMLET: Imagens, imagens, imagens