segunda-feira, 25 de julho de 2016

Divas


Os hábitos de Antônia são muitos e variados
Ainda que inclua a simpatia pública e a gargalhada estridente
A modalidade de riso cabeça rotacionada de forma espontânea para trás
Boca escandalosa e bicos dos seios em riste farejando altivos toda situação
Ocorreu de forma vibrante em duas grandes produções de sua vida
Uma, na encenação do primeiro,de seus três casamentos
Quando Antônia brindou com a presença de muitos convidados o arremate singelo de seus verdes anos
Depois de ter substituído o de noiva pelo de festa,
Antônia desceu as escadas numa cena típica de E o vento levou
Saltando do último degrau para os braços do recém-empossado marido,
que girou com ela 360º 
Suas mãos firmes engatadas às costas nuas de Antônia
Traziam ambas unhas limpas e suave camada de base 
No dedo esquerdo, a aliança brilhava
Os homens da festa pensavam no whisky que serviriam logo mais
As mulheres, algumas sonhavam com o buquê
Outras calculavam a base de corte do vestido e também havia as que lançavam um olhar misto de inveja e orgulho para a noiva
Por volta do grau 270º , a cabeça de Antônia ergueu-se pra trás 
A boca se abriu de escandalosa felicidade 
E assim que os pés tocaram o chão, Antônia foi surpreendida com um beijo digno de Gigliola e Mark, em Dio come ti amo
A segunda vez foi quando, depois de muita, muita engabelação mesmo
E o galã do drama ter se mostrado um perfeito idiota fora das câmeras
Antônia já com a mesma angústia amarga e fatal nível Vivien Leigh, dessa vez no papel de Blanche DuBois
Decidiu que não suportaria mais um único dia dentro do inferno sem chamas que era seu casamento
Farta de ser deixada para escanteio, Agarrou a mão e manga que o rapaz da feira lhe entregou
Com aquele olhar ao mesmo tempo arrastado e tímido
Soube deixar entre os dedos do moço um bilhete: "Venha, às sete. Porta lateral, a que dá para  a igrejinha"
As pernas em cruz abraçando os quadriz do moço de calças arreadas
 A anatomia da bunda de Antônia coincidindo com as frutas rotundas que o rapaz sopesava na feira
Ambas as nádegas fartavam as palmas e um precioso engenho de entrada e saída, entrada e saída
Dando-se os dois gostosamente atrás da porta lateral (a da igrejinha)
Um feixe de luz lambendo em corte transversal queixo, boca nariz e olho esquerdo dela 
Quando ele raspou os pelos da barba no pescoço de Antônia 
Cócegas escorreram garganta afora e ela derreou molemente a cabeça 
Boca vermelhosa arreganhou-se, olhos cerrados com a franja dos cílios bem arrumada
Veio um vagido vivo de gozo e em seguida a risada, assim meio debochada Rita Hayworth no papel pelica de Gilda
Uma cena linda e muito reprisada no Cinema Solidão sessão das seis
Antônia na janela do casarão fumando um cigarro acompanhada de um frisante - imitação nacional legítima do melhor prosecco produzido em Vêneto, região nordeste da Itália
Se por ali passasse algum diretor fotográfico ficaria emcantado com a luz e o enquadramento
Dos demais hábitos de Antônia, está o seu treino diante do espelho com o olhar fatal, não de Betty Davis, mas de Norma Desmond 
Tentando de algum modo tomar conhecimento da figurante que se apossou de seu corpo
Essa criatura de pálpebras e papada caídas, bochechas flácidas
E um desmoronamento das carnes por baixo dos braços, coxas, seios e barriga
Antônia pensa que é preciso ficar em paz com essa outra mulher, convocá-la, animá-la
The show must goes on!
É com essa personagem que pretende interpretar as cenas mais decisivas de sua carreira

sábado, 23 de julho de 2016

Espelho, Espelho



Edward Mãos de Tesoura percebo
O quanto parece estar feliz hoje
Amanhã é provável
- quase certo,
Que você fique triste
Por isso vai aproveitar hoje
A tábua de passar roupas
No meio da sala
Uma vitrola da década de 40
Herança do seu inventivo pai
Sempre que você lembra 
Seus olhos repuxam numa careta
Apenas evite o delicado confronto
Um corpo diante do outro
Concentre-se na tarefa prática de existir
Com a espada de um dedo afiado
Atravessa o vazio das mangas 
Suspende a camisa xadrez
Agora a lâmina longa da mão direta
Sinta a textura do tecido de algodão
Incrível seu gosto por coisas delicadas
Cuidado, Edward
Está tão feliz que pode estragar tudo
Ah, agora você quer dançar
"Traped by a thing called love"
Dance, Edward. Gire, querido
Na sala de espelhos você é mil
Os sofás já estão estourados
Desse salto exausto que você dá
Amanhã você conserta tudo
Esse longo e interminável amanhã
E o desfile das coisas finitas
- diante dos seus olhinhos vítreos
O que é isso, meu querido
Ei, olhe aqui. Nada de tristeza hoje
Você é um menino crescido
Essas lâminas afiadas 
E o fio cortante do silêncio
Ah, se eu me aproximar com essas palavras
Não quero nem pensar no que pode acontecer






segunda-feira, 11 de julho de 2016

Nem isso

Lembro-me de mim
Como se fosse hoje
A menina certamente se chamava Sandra ou Sônia 
Entre o seu olhar e o meu
Uma cabeça de velha
De onde eu estava, avistava o cabelo grosso feito o nylon das bonecas plásticas (todas essas cujo corpo se vende, penduradas nas vendas junto a salames, réstias de alho e cias de couro)
Um trecho de braço
Coberto num grosso casaco
Unhas sofríveis num esmalte escuro falhado
E a mão agarrada a um terço
Teria fornicado alguma vez
Pelo número de filhos, ao menos seis 
Sandra, de frente pra velha
Via os olhos azuis vibrantes
O nariz recurvo
Estranha e esculhambada sensualidade
E a boca incontrolável citando longos trechos de apócrifos
E a frouxa dentadura subindo e descendo conforme as palavras fragatas se agitavam no mar eslástico da língua
Adamastor e o Velho do Restelho numa única e incômoda forma
Impediam o imã dos meus olhos atrair os de Sônia
Só por alguns momentos segundos
O céu escuro se abria e eu via 
A claridade de um rosto
"Amo-te tanto meu amor não cante, não finja, não represente"
E apesar da situação política dessa ilha e dos demais continentes
Penso em Sandra e somente em Sônia
Dez mil morriam à minha direita e à minha esquerda anjos desmaiavam em fronts de guerra 
Meus olhos perseguiam a beleza de Sandra por trás do volume de feiúra que era a forma difusa e sensual da bruxa
Talvez ela nem existisse
Talvez fosse mesmo o tempo que se avoluma inundando tudo, cobrindo, fechando
Logo mais teríamos notícias dos últimos acontecimentos
Os deuses exigem tanto e por isso decidi aquele mesmo dia, além de me amarrar ao mastro
Também crobriria de cera os ouvidos
As sereias e suas bocas pequenas abriam e fechavam
Ainda hoje não escuto nada e tudo é líquido e estrondoso 
Todos os caminhos levam ao corpo


quarta-feira, 6 de julho de 2016

Náufragos do asfalto


Não me deixe sem notícias
Sinais de fumaça - quem sabe
Acordo assustada com os gritos 
Semana passada aconteceu de novo
Dessa vez foi uma menina
A noite e seus vertiginosos túneis
Por isso prefiro existir de dia
Salvo sua alma de um quase naufrágio com beijos emergenciais 
Teu hálito de anti-depressivos
Contra minha bala de gengibre 
A quem queremos enganar?
Ainda assim, arranco um gozo no deserto de teu corpo
Nossa transa se assemelha aquelas danças
Em que um dos dois é um boneco de pano
Você, essa ilha margeada de tristeza 
E o maldito romantismo sussurando ao meu ouvido
Aguenta mais um pouco, só mais um pouco, assim
Me desafogo de ti com a mudez dos soldados que retornam das guerras
Arrumo a casa, faço a melhor comida
Aviso que eu mesma  sairei para comprar as flores
Caminho  em dias de sol
A neblina do amor pesa em meus olhos
Não vou dizer, mas quero deixar bem claro
Estou contando as horas pra que essa temporada de eternidade acabe

sábado, 2 de julho de 2016

Bandeira


As mulheres do sabonete Araxá
São cinquentonas gostosas
E moram em casas largas 
Com cães latindo felizes em torno de suas saias
No que o sol dá as caras, elas vêm abrir janelas
Com um gesto expansivo de um Jesus recendescido do eterno crucifixo
O olhar doido doidinho pra dar dentadas no dia
Se possível, sem alvoroço
Há espaço para todos no coração dessas três
Agora cuidam das mães
Abraçam e beijam os netos
E riem, como elas riem com as frases que eles dizem
A primeira - não insistam!
Só faz ligações pra fixo
Imagino ela se enrolando no fio do telefone tipo a mocinha do filme
Emoldurada na porta que dá para um jardim
Me conta as últimas novidades 
Os casos mais descabidos 
Fico por dentro de tudo e ainda arrisco um palpite
Ai, essa eu amo muito demais e desejo
A segunda é das redes sociais
Tem perfil em vários sites 
Adoro quando ela agarra o gargalo do frisante
Fica assim meio alisando e me falando dos amantes
Dos olhos saem faíscas da vingança de saber
Por trás de cada calça o tipo de pau que resguardam
Me segreda esse segredo com a língua em meu ouvido
Ai, essa eu amo muito demais e desejo
A terceira já foi prostituta linda que eu namorei 
Fazia ponto na esquina da quadra de minha rua
E quando o frio batia, batia de não ter jeito
Eu ia lá ter com ela, dividir um cigarrinho
E um gole do bom conhaque
Ouvir confissões doídas
Tomar ódio de polícia
Imaginar um movimento e fazer revolução
Meus reinos e meus festins, tudo por esses olhares 
A alegria tão lírica
Os mantras que elas recitam 
As velas de sete dias para São Jorge Guerreiro
Novena de Nossa Senhora e o sagrado feminino
Sagrações da primavera, conselhos, receitas, chás
Tudo isso eu adoro
Nessas mulheres tesudas do Sabonete Araxá!
Não quero nunca que morram
Minha vontade por elas vem de um tempo tão antigo
De quando os homens  do mundo
Um mundo avesso a esse nosso
Eram gentis cavalheiros 
Respeitavam bem as moças
E cuidavam das crianças
Lágrima havia nenhuma
Só amor e temperança e cantigas de ninar
Essas cinquentonas lindas ainda me bouleversam 
Hipnotizam meus reinos, embriagam meus festins
Esses versinhos chinfrins, deixarei tudo pra elas
A cismar sozinho à noite
Abro um livro já antigo
Fico lendo e repetindo o poema feito reza
Ao poeta solitário que inventou essa balada
Vou dormir bem convencido:
Tenho mais do que preciso
Desejo só o que quero
Tudo belo belo belo