segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

estudos para um narrador confuso



Uma única uma que olha uma que observa uma que vê uma que está parada em um lugar dela mesma a mesma ela que observa a si ela mesma ali a observar-se. 

Toda tempestade começa com um breve mover de folhas. 

Como qualquer uma que não se interessa mais pela questão crucial, a menos que, exato, a menos que, talvez a questão crucial a interesse, sim. A boca está fechada agora, mas passeia em volta dos lábios uma pequena aranha. Existe prazer nisso de sentir um inseto passear sobre a pele. Existe prazer em praticamente tudo. Talvez o prazer se esconda em algumas partes do corpo, mas a aranha não está pensando que provoca um prazer quando passeia em volta dos lábios pois é impossível a esse pequeno inseto pensar a forma inteira do ser sobre o qual passeia. Os pés tocam a pele percebendo somente aclives e declives - não identifica a boca como o lugar onde nascem os beijos. A aranha não compreende um beijo. No beijo as bocas se compreendem. Pensar enquanto beija é sair do sonho da aranha que imagina aquele canto dos lábios como uma pequena fonte. Pensar durante o beijo é perder-se dentro do próprio corpo sem escapatória. Então, o passeio da pequena aranha... Uma única olha-se agora diante do espelho. Aproxima o rosto o próprio rosto o rosto dela mesma e acompanha o percurso da aranha na curva dos lábios, sua insistência ingênua forçando passagem pelos cantos onde brota a saliva. Uma  a que olha abre a boca vagarosamente. Uma a que sente percebe que agora a loucura vem com uma permissão suave e sem constrangimento. Uma ela mesma e não a outra que a observa sendo também ela mesma mas na condição única de observadora sem julgar sem esperar nada do próximo segundo pois todas as horas reservam abismos como as folhas que se movem antes da tempestade. Uma ela mesma olha permitindo a entrada da pequena aranha no vale escuro da boca. Será que ela sairia dali? Não pretende ir a parte alguma, a aranha, e ela mesma também não pretende se afastar dali até que se defina um nome; por isso uma ela mesma está cindida: uma observa e sente enquanto a outra suporta que a aranha em seus passos de sombra mova-se em torno dos lábios, agora prestes a avançar pela entrada da boca. É um exercício bem simples pois não depende de ninguém. Agora a pequena aranha entra na boca. É preciso compreender que ela não estava lá antes. Não veio do teto num fio colado descendo com presteza enquanto ela a que passou a observar e sentir deitada no tapete da sala olhava para o teto e pensava que precisava de um nome. Não foi assim. O que vale é que agora as perninhas se mexem com dificuldade pela língua úmida. Uma a que observa ela mesma esse percurso da aranha se lembra de uma tarde em que uma luz se derramava sob a colcha da cama sobre a qual uma moça nua sorria. Uma ela mesma imagina uma moça nua deitada sobre a cama. Percebam, são duas naturezas distintas: a cama e a moça. No dia em que a cama chegou ali teve que ser carregada pelas escadas. Dois homens tiveram que empreender suas forças naquele sacrifício de carregar a cama por nove lances. Ás vezes eles paravam e limpavam o suor, olhavam-se quietos aguardando o próximo movimento como numa dança ingrata. Respiravam fundo e seguiam. Até chegar ao quarto e decidir-se o canto em que a cama iria ficar. Ali? Não, ali é melhor. Ali, então. Próxima à janela. E ao entardecer daquele mesmo dia, uma luz incidiu sobre a cama e permaneceu até o surgir da noite em que houve lua e o reflexo invadiu o quarto em um tom azul muito difícil de ser reproduzido artificialmente. A moça não. Ninguém carregou a moça até ali. A moça veio, despiu-se, deitou-se e sorriu. Uma ela mesma - a que observa e por alguns momentos distrai-se pensando na cama e na moça - percebe que a aranha agora avançou mais um pouco e já quase alcança a garganta provocando uma leve cócega. Nesse momento é que o vento fica mais forte agitando com violência as folhas espalhadas pelo chão. Nesse momento uma ela mesma cospe a aranha na pia. É assim. Desse exato modo, ela mesma uma precisava de um nome. E o nome ali, úmido e disforme sobre a porcelana da pia. O nome é Ana. O lume. O númem. Ossos, carne, linguagem e vontade. Antes de Ana, nenhum mundo. Somente o rosto de uma ela mesma colado à face das águas aguardando com todos os sentidos e as palmas das mãos e os pés a rótula dos joelhos e mais os buracos do corpo nervos garganta tudo envolvido. Tudo à espera.