terça-feira, 28 de outubro de 2014

a moça francesa e o moço de máscaras

Compareceram às três da tarde. Deram sete batidas sobre a madeira (como sempre foi feito). No momento em que a primeira foi desferida, as demais começaram a cair sobre o solo fértil do coração. Pés sobre o chão. Passos. Mãos girando chaves. Uns e uns olhos. Sentiram-se um tanto febril. O em redor do mundo é gigante e aviões cruzam o céu e por trás das paredes há conversas concretas sobre situações reais que não subestimam a intimidade do silêncio. O dentro do estômago é estreito e  as pálpebras se fecham lentamente. Desaprender é um esforço imenso. Abriu a boca e, lá dentro, no fundo da garganta, o céu. 

Ele avançou com cabeça e tudo pela gruta estreita da garganta. Há via pólipos brancos recém nascidos. E pela traqueia abaixo foi um abismo até cair fofamente sobre a vermelhidão. O tempo não mais lhes pertence. Alonga-se demais e é possível perceber que sob a epiderme repousa outros planos para o final da tarde e para a madrugada e de manhã quando amanhecer. 

- Não posso te ver assim triste. Sinto vontade de matar você quando vejo que está triste. Aliás, sua tristeza me mata tão devagarinho que me apago por dentro como um cigarro que cai na poça d´agua fria. Mas disfarço. E disfarçar é muito mais intenso do que expulsar você da frente do meu corpo e de toda reação que possa se formar a partir do momento em que percebo que sua presença é provisória. Que a sua presença não tem mais aquele desejo de mergulhar lá dentro da superfície bruta do tempo e esquecer os movimentos e esquecer e esquecer.
- Sua mentira é uma tinta fresca. 

trancar por dentro e por fora
trancar e se cobrir
trancar e respirar bem devagar
trancar e lembrar da história do pássaro que esbofeteou o vidro e caiu morto

mas é cedo ainda

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

alhures

e hoje, ao passar
por aqui e por ali
encontramo-nos com outros
logo antes mesmo de sairmos de casa
outros estavam por aqui e por ali
subiam pelas pernas
escondiam-se atrás dos pelos
agarravam-se à curva magra do joelho
e os dedos cravados
afundavam pelas coxas
subiam com toda vontade
até pendurarem-se aos pentelhos
e adentrarem os buracos
nadavam por dentro de nós
corriam pela corrente sanguínea
aceleravam o ritmo do coração
e um vento louco tangia
as ideias para um e outro lado
logo ao sair e passar por eles
os outros, tantos
desviei meus olhos torpes de medo
guardei em segredo as mãos frias
os fios de cabelos brancos
crescendo lentos e supersticiosos
diante dos outros pelas ruas
crentes do mesmo horror antigo
fingiam-se conhecerem-se
tocavam-se distraídos
na verticalidade angustiante
do elevador
na saliva grossa
formando nos cantos da boca
no esbarrar de braços e pernas
entre as portas de entrada e saída
os outros todos os outros
e a pressa urgente de estar sozinho
pesava nos ombros tanto meus
quanto de todos os outros

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Báscara

Na sala de aula
O professor mal pago
Apaga lentamente o quadro
Às suas costas (que perigo!)
Adolescentes tristes
Aguardam o grande sinal

esquerda direita, volver

Alguns acontecimentos são extremos
A não ser que você esteja olhando pra cima
Olhar pra cima é evitar
Que o acontecimento escorra para um dos extremos

O extremo da direita é execrável
O extremo da esquerda é igualmente execrável

Os que visam à direita
Estão de costas para esquerda
Tem um saco de pedra diante deles
Abaixam-se para alcançar uma pedra
E jogá-la pelas costas com toda força
Atingindo a cabeça dos da esquerda

Os que visam à esquerda
Estão de costas para direita
Tem um saco de pedra diante deles
Abaixam-se para alcançar uma pedra
E jogá-la pelas costas com tora força
Atingindo a cabeça dos da direita

A corja dos extremos
Uiva raivosa ao surgir à sua frente
Algum da direita ou da esquerda
Não ouve com os próprios ouvidos
Não anda com as próprias pernas
A fala que sai de sua boca
Reverbera o grito louco
Contra esse, esse e aquele
Que não seja do seu bloco

Ao completar 16 anos
Ganhe o seu saco de pedra
E comece a treinar lançamento
Para a esquerda ou direita

A menos que você olhe pra cima
E evite tomar partido
Sem atirar pedras
Nem para esquerda ou para direita
Enxergará a melhor pessoa
Até que os partidos tenham partido


domingo, 5 de outubro de 2014

fantasma

Quando decidiu pelo não
Pesar os prós e os contras
Não se fez questão

Andou pela casa em silêncio
Já era um fantasma

Abraçou a mãe e os irmãos em silêncio
Já era um fantasma

Chorou os amores
Revisitou-os todos
Olhou o gato
E mais uma vez o invejou
E uns tantos livros,
Alguns ali, nunca lidos
Nada importava
Já era um fantasma

O tempo inerte
que engendra bolor
A tudo se adere
à face de um dente,
o amargo da língua
à remela dos olhos
o pretume que habita
unhas e rugas de alguns mendigos
sentados quietos em dias de sol

Cerrou lentamente os olhos
No gesto final de acalentar
Tristeza de rio incerto
Na lágrima amarga
jamais desaguada

Aliviou saber
Que o esforço de suas mãos
Forjavam um ritual
De primeira última vez

Entre um passo e outro
Deu-se com o espelho
Mirou-se estranho
E ainda quis avaliar as perdas
Mas tudo era perda
E perder-se de vez  seria abandonar
Uma casa antiga sem acesso ao sol
Onde as coisas úmidas achegam-se
À desolação dos mínimos objetos


Ele não havia ninguém mais em si
O corpo era somente uma sombra de carne
Preparando o despejo
A um exato lugar fora do tempo
E das coisas visíveis

um mundo mudo não muda

Uma nova categoria se constrói
A dos reagentes

Os que reagem
São violentos
Praticam também a violência
E quem vai reagir
Depois que todos reagirem violentamente?
Como reagir a reação?

Que silencio é esse que durante tanto tempo
Espera o momento exato da reação?

Que silêncio é esse que engendra
com dor imensa
uma reação?

E então depois de vencido o prazo
Grita violentamente
Exigindo que torturem, apedrejem, destrocem e executem
Aquele que primeiro gritou
E torturou e apedrejou e destroçou e executou

Todo silêncio forja dentro de si
O gesto e a palavra exata
que irá romper a casca

A costura da longa espera
É feita de desesperos